quinta-feira, 14 de março de 2024

A DESVENTURADA DERROTA DA ESQUERDA

 A caminho do cinquentenário de Abril, são quase cinquenta os deputados da extrema‑direita que vão ter assento na Assembleia da República. Quem diria? Mais do que tecer elegias sobre cravos murchos, importa que nos interroguemos acerca das causas desta alteração (estrutural?) das forças parlamentares. Como o terramoto eleitoral teve o seu epicentro no Sul do país, onde era rotineiro o domínio da esquerda (incapaz de responder aos desafios da globalização), aí devemos procurar os motivos da sua derrota. Entre eles, naturalmente, ressaltam as graves disfunções de uma economia sazonal aberta, favorecendo, pois, os fluxos clandestinos de imigrantes — e a multiplicação dos descamisados do turismo de massas e da agricultura intensiva. Tudo isto enriquece uns poucos, mas deixa um rasto insuportável de devastação social e ecológica. Sendo os trabalhadores desqualificados, aliás, os grandes perdedores deste planeta globalizado, é visceral a sua raiva, tanto mais que se sentem traídos por toda a esquerda, quer a velha (fossilizada pelos fantasmas geopolíticos da Guerra Fria) quer a nova (afunilada pelas lutas identitárias, com a consequente perda do horizonte do verdadeiro «teatro das operações»: o mundo do trabalho). Assim se explica, de facto, a transferência radical de votos, ou seja, de um extremo do espectro partidário para o seu antípoda.



Eurico de Carvalho

 In Público, n.º 12 368 (13 de Março de 2024), p. 8.

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quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

A «CARNAVALIZAÇÃO» DE PORTUGAL

 

Nestes dias que antecedem o Entrudo, quando o Zé Povinho prepara a máscara com que quer reinar na rua, agudiza‑se a consciência de que a «carnavalização» do real parece ser uma constante da paisagem mediática do nosso tempo. Disso mesmo são exemplo os especialistas que assumem a pele de «tudólogos»  — e os discípulos da «tudologia» que se julgam senhores de todas as especialidades. Há também comentadores que se tornam presidentes, havendo ainda quem seja presidente sem largar a casaca de comentador.

A tudo isto acresce, entretanto, a fauna característica da «futebolândia»: ex‑jogadores que falam com os pés — e faladores que jogam com as mãos de quem lhes segura o microfone. Não podemos esquecer, no entanto, os «treinadores de bancada» que pululam nas redes sociais, cujo «futebol falado» não fica atrás do da bancada de treinadores que estão nas prateleiras (perdão!, câmaras) das estações de televisão. Num ritmo imparável, aliás, qual corso carnavalesco, sucedem‑se as figuras e os figurões, e o pequeno ecrã assemelha‑se cada vez mais a um ringue de boxe amador. Mas ninguém leva a mal… Não é Carnaval? Neste inteiro Portugal, sempre!

 

Eurico de Carvalho

 

In Público, n.º 12 335 (9 de Fevereiro de 2024), p. 4.  

 

 


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sábado, 30 de dezembro de 2023

PELOURINHO DA LÍNGUA PORTUGUESA [XXXIV]

           Atentemos neste título: «Solidão aumenta em 50% o risco de demência» (Público, 18/11/23, p. 26). Onde está o erro? Aquele em está claramente a mais. Como aumentar significa o mesmo que acrescentar, a construção correcta dispensa a preposição. Por exemplo: «A solidão acrescenta 50% ao risco [preexistente] de demência.»

No corpo da notícia, além disso, temos uma frase infeliz: «A solidão transformou‑se numa pandemia à escala global […] (ibidem).» Como é óbvio, em pandemia, por força do seu radical grego (pan = tudo), já se encontra o sentido de global. Por outro lado, a recorrente expressão à escala de constitui um desnecessário galicismo, sendo, de facto, a imitação servil do francês «à l’échelle de». No caso de não se querer prescindir da palavra escala, diga‑se (conformemente a uma sugestão de Rodrigo de Sá Nogueira) na escala — em vez de à escala.

 

Eurico de Carvalho

 

 

 

 

 

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sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

A DIMINUIÇÃO DO ABANDONO ESCOLAR: UMA VITÓRIA DE PIRRO?

 


 

Todas as moedas têm duas faces. Trata‑se de um truísmo que podemos ilustrar com o sucesso (flor na lapela de sucessivos governos!) do combate ao abandono escolar. Ao longo dos últimos anos, a sua gradual e significativa diminuição merece o aplauso da sociedade. Mas importa avaliar igualmente os custos sistémicos (ocultos, até) dessa esplendorosa descida. Deste lado da análise, todavia, parece ser de Pirro a vitória do sistema educativo. Assistimos, com efeito, à paulatina transformação da escola pública numa instituição de assistência social e/ou animação cultural. Concomitantemente, é notório o descrédito social dos diplomas escolares. Com o alargamento da escolaridade obrigatória, ademais, até aos 18 anos (em flagrante contradição, aliás, com o Código de Trabalho, no qual se estabelece o marco dos 16 como idade mínima para trabalhar), não devemos varrer para debaixo do tapete um novo fenómeno: a silenciosa transferência — da rua para os estabelecimentos de ensino — de muitos comportamentos anti‑sociais, com a consequente «normalização» institucional da delinquência juvenil.

Perante tudo isto, impõe‑se a pergunta: Será surpresa para alguém o aumento exponencial do mercado do ensino privado? Obviamente, não!

 

Eurico de Carvalho

 

In Público, n.º 12 293 (28 de Dezembro de 2023), p. 6.

 

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sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

MANOBRAS DE NOVEMBRO

 


 

Com o respaldo altissonante do crescimento europeu da extrema‑direita, abre‑se espaço mediático para quem queira reescrever a História. É neste contexto geopolítico que devemos entender a disputa simbólica em curso — em torno do 25 de Novembro. Todas as tentativas de pôr Abril à sua sombra foram fruto, como sabemos bem, dos que nunca suportaram (com saudades salazarentas) o aroma dos cravos. Mas hoje o atrevimento é maior… Aqueles que se apresentam como paladinos do 25 de Novembro e da democracia pluralista vêem o Major Jaime Neves como o seu “herói”. Falta‑lhes, porém, a memória do objectivo último de tal personagem: a reimplantação de uma trave‑mestra da política repressiva do Estado Novo, ou seja, a ilegalização do Partido Comunista.

No que diz respeito à verdade histórica, o 25 de Novembro deve ser lembrado, antes, por uma grande razão: a prevenção da guerra civil. Quanto ao resto, trata‑se de puro oportunismo dos que sempre quiseram retirar do calendário o 25 de Abril.

 

Eurico de Carvalho

 

In Expresso, n.º 2 666 (1 de Dezembro de 2022), p. 33.

 


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A “BURROCRATIZAÇÃO” DO ENSINO

 


Enquanto o país se entretém com a futura localização de um aeroporto que se tornou a imagem do desatino e da incapacidade estrutural de decidir em tempo útil, esquecem‑se as más notícias que ensombram a escola pública. Concomitantemente, quem queira servir‑se da pandemia para relativizar os resultados negativos do desempenho internacional dos nossos alunos — só pode ter em mente o eterno argumento do “coitadinho”.

Quando tudo gira em torno da mediocridade, em nome da qual ganhou raízes o maior monstro burocrático e legislativo de sempre, eis‑nos perante o Leviatã que não suga apenas as energias dos melhores professores, mas também destrói a sua dignidade profissional. Com que objectivo? A encenação de um “céu de papel” que esconda a triste realidade da terra. Mas este ocultamento do “reino da estupidez”, para nosso bem, não é totalmente estanque. E os sinais do desastre educativo nacional estão à vista, de facto, não sendo já possível camuflá‑los com o fogo‑de‑artifício dos recursos digitais e outros ilusionismos da era da inteligência artificial.

 

Eurico de Carvalho

 

In Expresso, n.º 2 668 (15 de Dezembro de 2022), p. 33.

 

 

 

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sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

CONFERÊNCIA DE 7 DE DEZEMBRO DE 2023

 

«ESTÉTICA,POLÍTICA E CONHECIMENTO — 8.º Seminário Aberto de Investigação (2023)».  —  No âmbito deste encontro, pronunciei, no dia 7 de Dezembro, pelas 16h, na Sala 1 de Reuniões da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, a comunicação que se segue:   «FOUCAULT E A FILOSOFIA — Em Prol de Uma Leitura Kantianizante da Obra Foucauldiana

 

Para os leitores desta Montr@, aqui fica o resumo da minha intervenção:

 

Eis o nosso ponto de partida: «Qu’est‑ce que les Lumières?», de Foucault. Neste opúsculo, que data de 1984 (o ano da morte do seu Autor), encontra‑se a chave hermenêutica de toda a obra foucauldiana, com o consequente reconhecimento (às avessas de certas aparências — literárias e historicizantes) de que é filosófico, de facto, o seu estatuto discursivo. Enquanto filósofo, Foucault procede — aí — à definição da própria Filosofia, retomando originalmente os termos do debate aberto — em 1784 — pelo célebre artigo homónimo de Kant: «Was ist Aufklärung?» (É de dois séculos, precisamente, a distância que separa ambos os textos.) Como havemos de ver, porém, a leitura foucauldiana do opúsculo kantiano não consiste numa reflexão comemorativa ou laudatória do movimento histórico‑cultural que se chama (em português corrente) Iluminismo. Mas também não se trata do seu contrário. Para Foucault, de resto, não faz sentido estar a favor ou contra as Luzes. O que lhe interessa é outra coisa: «La réflexion sur “aujourd’hui” comme différence dans l’histoire et comme motif pour ume tâche philosophique particulière me paraît être la nouveauté de ce texte.» Por isso mesmo, é no quadro histórico de uma «ontologia do presente» que se deve compreender a urgência e o valor da crítica filosófica. Mas a noção foucauldiana de crítica inverte efectivamente a de Kant, não sendo, pois, de natureza transcendental. Enquanto Kant, com efeito, pretende estabelecer os limites do conhecimento, ou seja, que não devem ser ultrapassados (sob pena de dogmatismo) pelo discurso do filósofo, Foucault, por sua vez, atribui‑lhe exactamente a tarefa de determinar o que hoje deve ser objeto de ultrapassagem. Neste «kantismo inverso», altera‑se, portanto, o horizonte do trabalho filosófico, tanto mais que os limites a ultrapassar já não se circunscrevem ao campo cognitivo, mas respeitam a todo o domínio do pensamento. O que importa agora, para Foucault, não reside numa analítica que determine abstractamente as estruturas universais do saber; o que lhe interessa passa, antes, pela determinação das condições histórico‑culturais da emergência de acções e pensamentos de que nos dizemos sujeitos, mas aos quais, realmente, estamos sujeitos.

Como contraponto à leitura foucauldiana de Kant, vamos propor, por outro lado, uma leitura kantiana de Foucault. Deste ponto de vista, tornar‑se‑á evidente que Foucault, malgré lui — e o seu desprezo pelas narrativas modernas da emancipação da Humanidade —, não deixa de ser um pensador da Modernidade.

 

Eurico de Carvalho

 

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sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Um Discurso de 20 de Março de 2023

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

O ELOGIO DO LEITOR

 

Como instrumento de intervenção cívica, o correio do leitor constitui certamente uma arma insubstituível da democracia. Mas se esta não existe, de facto, sem uma imprensa livre, impõe‑se o corolário de que a sua força também depende da liberdade de expressão de quem lê. Ao escrever cartas para os jornais (sem garantia alguma, aliás, de que vejam a luz do dia), o leitor transmuda‑se graciosamente num cidadão maior, cuja voz não se esgota, portanto, de quatro em quatro anos, numa cruz num boletim de voto. Além da urna (e da rua, porventura), cabe‑lhe um lugar sagrado: o púlpito do homem comum. (Não o devemos confundir, claro está, com o esgoto a céu aberto das redes sociais.) Bem haja o Público, pois, por manter acesa a chama desse espaço, no qual se espelha a imensa paleta republicana das cores do mundo!

 

Eurico de Carvalho

 

In Público, n.º 12 044 (22 de Abril de 2023), p. 16.  

 

 


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quinta-feira, 26 de outubro de 2023

VOTO ELECTRÓNICO? UM ERRO CRASSO

 


Tem sido a crescente abstenção eleitoral e a exigência de a combater o grande argumento dos defensores do voto electrónico. Sem cuidar, por agora, de discutir o pressuposto oculto desta argumentação (a saber: a ideia de que a presente erosão da democracia se resolve simplesmente com o aumento da participação eleitoral), é preciso mostrar a incompatibilidade estrutural entre a votação electrónica e os critérios que devem ser satisfeitos para salvaguardar o carácter democrático do exercício do direito de sufrágio. De acordo com a C. R. P., esse direito exerce‑se de uma forma directa, secreta e presencial. Ora, só o boletim anónimo de papel (idêntico a qualquer outro, portanto) pode proteger o eleitor, garantindo‑lhe, de um modo imediato e tangível, a confidencialidade do seu voto. Pelo contrário, o sistema electrónico retira‑lhe a tangibilidade dessa garantia, cujo privilégio cognitivo, do ponto de vista de quem vota, passa por ser, sem dúvida, a trave‑mestra do regime fiduciário em que assenta a democracia (e sem a qual, naturalmente, apenas nos resta a ruína inerente às teorias da conspiração). Se queremos salvar a democracia, enfim, não podemos prescindir do suor dos cidadãos.

Eurico de Carvalho

In Público, n.º 12 229 (24 de Outubro de 2023), p. 6.

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terça-feira, 24 de outubro de 2023

NOVOS PROLETÁRIOS: OS CIENTISTAS PORTUGUESES

 


A comunidade de investigadores portugueses é composta, na sua maior parte, por membros do “precariado”: o novo proletariado do século XXI. Como é que um cientista, perguntar‑se‑á, pode ser um trabalhador precário? Será possível fazer ciência, no pleno sentido do termo, num contexto de exploração laboral? Sabemos bem que a neoliberalização das relações entre o capital e o trabalho, em completo desfavor deste último, não conhece fronteiras, estando igualmente ao serviço da mercantilização do saber. Mas o caso lusitano acrescenta, relativamente ao neoliberalismo reinante, uma particularidade perversa: o facto de ser mais importante ter conhecimentos, neste rectângulo paroquial, do que procurar conhecimento. É, pois, sob o pano de fundo da cultura da “cunha”, que impregna todos os estratos da nossa sociedade, que se torna deveras cruciante o cenário de precariedade da investigação científica. Assim sendo, quem lhe pode exigir que cumpra o seu papel de motor de desenvolvimento do país? Ninguém!

Eurico de Carvalho

In Público, n.º 12 131 (18 de Julho de 2023), p. 6.

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segunda-feira, 23 de outubro de 2023

E. U. A. VS. CHINA: O GRANDE JOGO DA HIPOCRISIA

 


No sagrado coração do capitalismo, surge a notícia, qual meteorito de Júpiter, de que está proibido o investimento privado (tenha calma, caro leitor!), mas apenas nas empresas chinesas de inteligência artificial. Por sua vez, a China, abençoada pátria do comunismo, já reagiu à proibição, tendo condenado os E. U. A. pelo incumprimento das santíssimas regras da economia de mercado.

De tudo isto, que devemos concluir? Tratar‑se‑á de uma comédia de enganos? Parece que a verdadeira resposta é outra: talvez estejamos perante o princípio de uma tragédia, cujo nome, naturalmente, ninguém quer pronunciar.

Eurico de Carvalho

In Público, n.º 12 157 (13 de Agosto de 2023), p. 4.

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

A VIDEOVIGILÂNCIA E O FUTURO DA DEMOCRACIA

 


Não é preciso ter lido Foucault para compreender que a presente expansão dos sistemas de videovigilância nas nossas cidades constitui uma ameaça aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Trata‑se de uma estratégia securitária cujo alcance vai muito além da suposta prevenção da criminalidade: o que temos aqui é um dispositivo de normalização de comportamentos. Quem sabe que está a ser vigiado, com efeito, adopta a máscara que se pretende que ele use. Por outras palavras: a simples observação de condutas é já uma forma de as dominar.

Com a multiplicação exponencial das câmaras de televisão, é o próprio espaço urbano que se reterritorializa sob a figura sinistra de uma prisão de alta segurança. Nem o inventor do Panopticon (o cárcere ideal de Bentham) teria imaginado tal possibilidade: a generalização dos mecanismos panópticos enquanto instrumentos de controlo dos movimentos das populações (e não apenas dos reclusos). Pois bem. Que as pessoas estejam disponíveis para trocar a liberdade pela segurança, eis o que mais deve preocupar quem preza o futuro da democracia.

Eurico de Carvalho

 

In Público, n.º 12 212 (7 de Outubro de 2023), p. 6.

 

 

 


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quinta-feira, 21 de setembro de 2023

O ÚLTIMO POEMA DE CESARINY

 


 

Na pequena barca do surrealismo de Lisboa, singrou Cesariny como poeta maior e pintor menor. Como lhe era insuportável a sombra tutelar de Pessoa sobre a poesia do seu tempo, como a Pessoa incomodava, aliás, o peso de Camões, seu Adamastor, Mário Cesariny (“ó meu deus”) de Vasconcelos quis viver a vida, às avessas do cerebralismo pessoano, sobre a grande passadeira do amor (assumidamente homossexual). Por isso mesmo, pagou o preço, com o seu próprio corpo, dos vexames públicos e da prisão, em França, por “maus costumes”. Nele, realmente, nenhum intervalo hipócrita poderia reluzir entre o dizer e o fazer.

Neste centenário do nascimento de Cesariny, é bom que lembremos igualmente o testamento do homem, no qual se determina a doação de mais de um milhão de euros à Casa Pia. Terá sido, por certo, para Cesariny, o derradeiro exercício poético, irradiando, pois, por todos os poros, o seu característico humor negro. Na galeria dos notáveis da Casa Pia, com efeito, passam a estar lado a lado (suprema ironia!) o Intendente Pina Manique e o surrealista Cesariny.

Eurico de Carvalho

 

In Público, n.º 12 164 (20 de Agosto de 2023), pp. 6‑7.

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quinta-feira, 14 de setembro de 2023

A GRANDE ILUSÃO DOS MANUAIS DIGITAIS

 

Relativamente à colonização digital dos processos de ensino e aprendizagem, já são muitos os sinais vermelhos que emitem os países mais avançados nessa área. (Veja‑se o caso, por exemplo, da Suécia.) Pesem embora esses avisos, o Ministério da Educação insiste cegamente em experimentalismos tecnocêntricos, querendo agora acelerar a introdução dos manuais digitais no Ensino Básico.

Pois bem. Contra a digitalização dos suportes da leitura e da escrita, é preciso defender as virtudes didácticas do livro de papel. A sua linearidade, desde logo, facilita a assimilação da informação. Por não serem flutuantes, além disso, as suas páginas, temos a garantia de que esta estabilidade gráfica potencia a atenção, cuja maximização (indispensável à compreensão do que se lê) é o principal recurso pedagógico da aula. (Sem ela, realmente, nada funciona.) A tudo isto acresce, por outro lado, o relativo isolamento tecnológico do livro de papel, no qual não podem entrar (contrariamente ao que se passa com o livro electrónico) outros dispositivos, ou seja, susceptíveis de competir com a leitura, parasitando‑a irreversivelmente.

Em suma: não é pedagogicamente neutra nem positiva a transferência do livro para suportes informáticos, sendo previsíveis, de resto, as suas consequências perversas (equivalentes, aliás, nos domínios da leitura e da escrita, às que resultaram, no âmbito do cálculo mental, do uso precoce das máquinas de calcular).

 

Eurico de Carvalho

 

In Público, n.º 12 188 (13 de Setembro de 2023), p. 6.

 

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quinta-feira, 6 de julho de 2023

O FUTURO DA RUA

 

É de saudar (conformemente à notícia do PÚBLICO de 30 de Junho) o aparecimento de um novo grupo universitário — The Future Design of Streets Association —, o qual pretende reflectir, como o indica o seu nome, sobre o futuro da rua. Mas será que a rua tem futuro?   Não o há‑de ter, por certo, se continuar a ser o que ainda é, ou seja, o cinzento canal rodoviário das deambulações pendulares da massa anónima dos subúrbios das grandes cidades.

Como a “ditadura do automóvel” é inseparável da ordem capitalista mundial, torna‑se quase evanescente a hipótese de uma retoma libertária da rua sem a recusa concomitante dos estilos de vida advindos de uma totalização mercantil da existência. Quer isto dizer que o futuro da rua, enquanto território do pensamento crítico, não constitui um domínio exclusivo de arquitectos e urbanistas.

Contra Le Corbusier, que perspectivava o projecto arquitectónico como um dispositivo anti‑revolucionário (“Arquitectura ou revolução!” — dizia ele disjuntivamente), devemos associar a arquitectura à revolução — que devolva a rua a todos (dos mais idosos às crianças). Para ser verdadeira, porém, tal devolução está longe de ser comparável com a transformação turística da rua, ou seja, com a sua espectacularização (mero suporte estético, como qualquer um de nós pode observar, de um urbanismo selvagem e especulativo). Disso mesmo é exemplo o restauro de fachada dos centros históricos das principais urbes do nosso país.

 

Eurico de Carvalho

 

In Público, n.º 12 119 (6 de Julho de 2023), p. 7.

 

 

 

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sexta-feira, 24 de março de 2023

Discurso de 20 de Março de 2023

sábado, 4 de março de 2023

O DESAPARECIMENTO DA NOITE


A notícia do Público sobre os altíssimos índices de poluição luminosa (cf. edição de 21 de Janeiro) dá‑nos uma imagem negra de Portugal. Com efeito, estamos entre os maiores poluidores da Europa, o que não deixa de ser escandaloso num tempo de crise energética!

Além de se afigurar um gigantesco obstáculo à investigação astronómica, a perda da noite constitui um desastre ambiental, cujas consequências negativas, por certo, para o futuro da Humanidade, ainda hão‑de ser objecto de um juízo que elucide a opinião pública e satisfaça a comunidade científica. (São evidentes, pelo menos, e para já, as perturbações do sono.) Mas o Homem só se tornou Homem, ao longo de milénios, nesta alternância — cósmica — de luz e treva. Ora, perante a perspectiva apocalíptica de um término de tal bipolaridade, é caso para fazer nosso o célebre verso de Álvaro de Campos: «Vem, Noite antiquíssima e idêntica», e devolve‑nos as estrelas do Universo!

Eurico de Carvalho

In Público, n.º 11 956 (24 de Janeiro de 2023), p. 4.

 P. S. — Após a publicação deste escrito, e em plena releitura d’A Cidade e as Serras, descobrimos um trecho suculento, a saber:

«Na Cidade (como notou Jacinto) nunca se olham, nem lembram os astros — por causa dos candeeiros de gás ou dos globos de electricidade que os ofuscam. Por isso (como eu notei) nunca se entra nessa comunhão com o Universo que é a única glória e única consolação da Vida. Mas na serra, sem prédios disformes de seis andares, sem a fumaraça que tapa Deus, sem os cuidados que, como pedaços de chumbo, puxam a alma para o pó rasteiro — um Jacinto, um Zé Fernandes, livres, bem jantados, fumando nos poiais de uma janela, olham para os astros e os astros olham para eles. Uns, certamente, com olhos de sublime imobilidade ou de sublime indiferença. Mas outros curiosamente, ansiosamente, com uma luz que acena, uma luz que chama, como se tentassem, de tão longe, revelar os seus segredos, ou de tão longe compreender os nossos…» [Eça de Queiroz, A Cidade e as Serras, 7.ª ed. (Lisboa: Círculo de Leitores, 1982), p. 128]. 

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A TAGARELICE DE BELÉM

 

Num contraste estratosférico com o perfil esfíngico e salazarento do seu antecessor, a figura de Marcelo lembra a irrequietude do pardal. A velocidade com que fala, aliás, de tudo e de nada, é estonteante. Salta de tema para tema como ramos da mesma árvore, plantando novas com a astúcia das velhas…

A tagarelice compulsiva não terá a particularidade folclórica de um certo mergulho no Tejo, mas já deveria ter merecido a atenção da Academia. Embora haja «cientistas políticos» a diagnosticar (com ar circunspecto e contrito) a perda presidencial de auctoritas e gravitas, tem sido muito curta a manta do Latim para tanta verborreia de Belém.

In extremis, talvez possamos trocar a ciência lusa pela filosofia alemã. Apelemos, pois, para o maior filósofo (segundo alguns) do século XX: Heidegger, o pensador da Floresta Negra. Na sua obra‑prima, Ser e Tempo, temos, pela primeira vez, uma objectivação fenomenológica da tagarelice, à qual corresponde, enquanto facúndia falaz e vazia, o sinal da inautenticidade.

Aqui fica, portanto, o conselho que dirigimos a quem queira compreender as aventuras e desventuras de Marcelo: «Leia Heidegger!» — E esta, hem?!

Eurico de Carvalho

In Expresso, n.º 2 614 (2 de Dezembro de 2022), p. 33.

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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

UM NOVÍSSIMO ARTIGO SOBRE GUY DEBORD

 

Caros leitores:

 

Já está disponível o último número da Revista Aufklärung! Aqui podeis consultar um artigo da minha autoria:

 

D’A SOCIEDADE DO ESPECTÁCULO (1967) AOS COMENTÁRIOS (1988):

 UM “CORTE EPISTEMOLÓGICO”? 

Uma Hipótese Hermenêutica sobre a Obra de Guy Debord

 

Boas leituras!

 


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domingo, 4 de setembro de 2022

GORBATCHOV, O HOMEM QUE MUDOU O MUNDO

 

De quando em vez (di‑lo Hegel algures), a História calça as suas botas de sete léguas. Calçou‑as, de facto, no dia 11 de Março de 1985: a data da tomada de posse — como secretário‑geral do Partido Comunista da União Soviética — de um filho de camponeses (de seu nome, Mikhail Gorbatchov).

Na hora da sua morte, que devemos imprimir na pedra tumular? Isto: sem pedir licença à teoria marxista da História, Gorbatchov mudou o mundo. Da queda do Muro de Berlim (1989) à implosão da URSS (1991), passando ainda pela reunificação alemã (1990), eis uma série imprevisível de acontecimentos. Em sete anos apenas, portanto, o último presidente do Politburo tornou‑se o verdadeiro destruidor (involuntário?) da ordem de Ialta (1945), com o consequente fim da Guerra Fria.

Sendo um ídolo do Ocidente, que lhe outorgou um Prémio Nobel em 1990, continua a ser, porém, para a maioria dos russos, um traidor. Com o seu adeus, abre‑se a porta para o juízo do tempo, o qual não se confunde, por certo, com o dos homens que lhe recusaram o funeral de Estado.

 

Eurico de Carvalho

In Público, n.º 11 816 (4 de Setembro de 2022), p. 6.

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JOÃO MIGUEL TAVARES E AS ELITES PORTUGUESAS

 

Nada de novo nos traz a crónica de João Miguel Tavares sobre a responsabilidade das elites portuguesas pelo atraso de Portugal em relação à Europa (cf. Público, 25/8/22, p. 48). Muito antes dele, o maior escritor de ideias do século XX português, ou seja, António Sérgio, esse esquecido, já tinha alertado o país para o nosso drama: «Uma das razões dessa antiga indigência — dizia ele lapidarmente — é que as classes superiores do nosso país nunca foram um escol no rigor do termo, isto é, que nunca dirigiram o trabalho do obreiro, que nunca se esforçaram pelo seu progresso, que nunca o impulsionaram com os exemplos úteis, que nunca exerceram uma direcção social.» Atentando maximamente no grifo, que é nosso, será mesmo necessário algum considerando suplementar? A realidade grita à nossa volta!

Mas o que deveras surpreende o leitor do Público é a desmesurada anglofilia de J. M. T. É chocante, em especial, o seu boçal fascínio pelo escol britânico. Para o ilustrar, J. M. T. apresenta‑nos o exemplo de Churchill. Saberá o cronista que o seu bem‑amado chefe dos conservadores ingleses perdeu as eleições em 1945? Porquê? Seria bom que pesquisasse o assunto.

Eurico de Carvalho

In Público, n.º 11 810 (29 de Agosto de 2022), p. 4.

P. S. — Eis um passo suculento da crónica a que nos referimos: «Não pretendo que as elites sejam abolidas — pelo contrário, desejo que sejam transformadas, para que um dia possam estar à altura do seu nome, e comecem a fabricar os seus Churchill [sic].» Além de ler biografias sobre Churchill, seria bom que o cronista tivesse à mão um prontuário. Em português de lei, com efeito, pluralizam‑se os nomes próprios. Assim sendo, J. M. T. deveria ter escrito Churchills.

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«CUI BONO?» TRÊS PROPOSTAS EM PROL DA LUTA NACIONAL CONTRA OS INCÊNDIOS


Até quando teremos de suportar a tragédia sazonal dos incêndios? Haverá melhor exemplo [do que este] da absoluta falência do Estado e da sua captura por interesses privados? Há quem ganhe bastante dinheiro (não tenhamos dúvidas!) com a persistência, ao longo dos últimos decénios, deste desastre humano e ambiental. Ora, por muito que o poder político queira alijar as suas responsabilidades sob o capote das alterações climáticas, torna‑se inegável (em especial, no que diz respeito ao ordenamento do território) a falta de visão estratégica, de que é nigérrimo sintoma o despovoamento do interior do país.

Em suma: a ausência de sentido de Estado por parte da maioria dos nossos governantes (independentemente da sua cor partidária) tem impedido que o bem comum se sobreponha, à luz da lei fundamental, aos sacrossantos direitos de propriedade.

Se houvesse, de facto, tal sentido de Estado, três medidas, pelo menos, de alcance conjuntural, já teriam sido tomadas: (i) a nacionalização dos meios aéreos de combate aos fogos florestais; (ii) a retirada dos circuitos comerciais (em prol de estaleiros públicos) de toda a madeira queimada; e (iii) a proibição de qualquer construção em terrenos que arderam.

A implantação imediata de tais desígnios legislativos teria a vantagem, desde logo, de retirar quase todo o combustível, por assim dizer, às acções criminosas que envolvem o fogo posto, cujo efectivo impacto sobre a paisagem poderá ser maior, porventura, do que aquele que se infere, é certo, das estatísticas.

Eurico de Carvalho

In Público, n.º 11 798 (17 de Agosto de 2022), p. 6. 

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domingo, 24 de julho de 2022

PELOURINHO DA LÍNGUA PORTUGUESA [IX]

 

Já contamina as páginas do Público, ai de nós!, o «futebolês». Veja‑se, por exemplo, o seguinte passo da crónica deste sábado de São José Almeida: «A surpresa do debate sobre o estado da nação veio mesmo da prestação [sic] do ministro do Ambiente e Acção Climática, Duarte Cordeiro, na sua primeira intervenção parlamentar de fundo nesse estatuto» (p. 10). Eis a nossa sentença: onde está «prestação» deveria estar (em português de lei!) «desempenho». E se esta palavra, porventura, não agradar à jornalista, não lhe faltarão alternativas, tais como: «exibição» ou «actuação». A língua portuguesa é extremamente rica, mas não falta quem a queira empobrecer!

Eurico de Carvalho

P. S. — É completamente redundante a cauda da frase em causa: «nesse estatuto». Impõe‑se, pois, o seu corte. Por vezes, claro está, menos é mais.

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quinta-feira, 14 de julho de 2022

PELOURINHO DA LÍNGUA PORTUGUESA [VIII]



São frequentíssimos os erros de concordância… A este respeito, aliás, é deveras instrutivo o fecho — pseudo‑entusiástico — da crónica hodierna de João Miguel Tavares: «Guardem [sic] na vossa memória o magnífico 12 de Julho de 2022 — o dia em que Portugal mudou para sempre. Aleluia, aleluia.» Mas não é magnífica a prosa, ai de nós!, do cronista do Público. Com efeito, onde está «guardem» deveria estar «guardai».

Eurico de Carvalho

P. S. — Tendo «Aleluia!», neste caso, valor interjectivo, impõe‑se o uso, em bom rigor, do sinal de exclamação. 

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PELOURINHO DA LÍNGUA PORTUGUESA [VII]

 

Não há linguagem alguma que seja neutra ou inocente. Quem tem a pretensão contrária (vítima auto‑eleita, porventura, das ilusões totalitárias do que se entende por «politicamente correcto»), só pode estar enganado, tanto mais que, em plena globalização, nada parece escapar à lógica especulativa do capital. Quer isto dizer que assistimos impotentemente à paulatina actualização da possibilidade — inumana — de transformação do mundo em mera mercadoria. Desta mercantilização (imparável, aliás) são inúmeros os sinais diários. Eis um deles: «Treinador do [ManchesterUnited garante que Ronaldo não está à venda» (Público, 12/7/2022, p. 38). Pese embora o que acima dissemos, não deixa de ser chocante o modo como se intitula a notícia acerca das vicissitudes da relação contratual entre o clube britânico e o atleta português. Será escravo o Ronaldo? Poderá o madeirense estar à venda? Ora, por muita contextualização que se faça do uso jornalístico de certos termos mercantis, trata‑se objectivamente de um linguajar que viola a dignidade de qualquer um de nós.

Eurico de Carvalho

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O FIM DA ESCOLA

 

É um facto a crescente diminuição da capacidade do subsistema económico para absorver as novas gerações que atingem a idade adulta, justificando-se assim a tese daqueles que já vêem no desemprego um fenómeno estrutural das sociedades capitalistas avançadas. Se nestas se impõe a sobredeterminação do ser pelo ter e a consequente avaliação da socialização em termos estritamente profissionais, torna-se então manifesto o potencial explosivo do que está aqui em jogo.

Não sendo um corpo isolado, a escola reflecte as condições do seu meio. Enquanto instituição nuclear de qualquer regime republicano democrático, à qual compete a formação de indivíduos capazes de assumir com dignidade e consciência o seu papel de guardiães da «coisa pública», sofre inevitavelmente as consequências da mudança social a que hoje assistimos, e cujo significado, culturalmente falando, se resume à selvagem mercantilização do saber, que agora se reduz à moeda corrente da informação.

Embora os problemas da escola não sejam, por um lado, apenas desta, mas da sociedade no seu todo, somos, por outro, progressivamente levados a pensar que as dificuldades de transição para a idade adulta se devem à incapacidade das instituições existentes (do sistema de ensino, em particular) para desempenhar convenientemente o que se tornou, por força da «demissão dos pais», em primeiro lugar, uma empreitada muito vasta de socialização. Essa incapacidade institucional (e, por assim dizer, institucionalizada) revela-se especialmente escandalosa no domínio educativo, cujo desenvolvimento (não há quem o negue!) passa por ser a suma medida do progresso de qualquer comunidade. Por isso mesmo, faz‑se mister resolver o problema  da nova subclasse de escolarizados: uma minoria de jovens cujo precoce abandono do ensino não lhes permite a aquisição de um suficiente «capital cultural» para responder com eficácia às exigências da vida moderna, indo assim engrossar as fileiras da mão‑de‑obra desqualificada.

Na nossa sociedade altamente especializada e complexa, numerosos agentes ou sistemas de socialização, sem qualquer coordenação entre si, funcionam simultânea e paralelamente. Tendo cada burocracia institucional delimitado cuidadosamente a sua esfera de prerrogativas e influências, multiplicam-se, qual polvo administrativo, os circuitos fechados e as cadeias anónimas de um poder exercido em nome de mecanismos meramente processuais. Estamos perante o florescer do fenómeno mais que discutido da burocratização, cujo sentido se manifesta numa administração galopante do quotidiano, a qual é própria das sociedades modernas em vias de «terciarização» de grande parte das suas actividades económicas. O imperialismo desta gramática administrativa (potencialmente totalitária) é enquadrado, nomeadamente, por Habermas, no contexto problemático da «colonização da esfera da experiência», cuja reprodução simbólica depende cada vez mais da intervenção programática dos meios monetários e burocráticos.

Os problemas da sociedade capitalista avançada de que nos fala Habermas já não são propriamente resultantes da ordem da produção, mas da do consumo. Trata-se, por conseguinte, de uma sociedade de clientes (no antigo sentido do termo). De facto, uma classe de funcionários (de resto, em extensão permanente) tem a seu cargo, desde o berço até ao túmulo, toda a população. Além disso, o leque de competências dos especialistas não pára de diminuir: já nenhum se ocupa do cliente como um todo. Por outras palavras (mais metafóricas): cuida‑se da doença, mas não do doente. Consequentemente, as relações entre os agentes dos serviços sociais e o cliente tornam‑se irregulares e fragmentárias. Com o risco adveniente da transformação das tarefas que executam numa rede elaborada de medidas de controlo, os funcionários públicos tendem a confundir os interesses da sua função com os seus próprios.

À medida que a família perde importância no domínio educativo e se verifica o aumento das dificuldades de acesso à chamada «vida activa», a escola acaba por assumir a condição de instituição intermediária e uma missão crescentemente pesada, cuja execução plena é exigida pelos alunos e encarregados de educação. Estará, no entanto, a escola, enquanto parte sujeita às razões do todo, em condições de responder a essas exigências? Na verdade, o subsistema de ensino, por fazer parte de um sistema que o ultrapassa, está hoje organizado em função de normas impostas por uma sociedade orientada para o sucesso. Paulatinamente, tornou‑se mais formal e administrativo, sendo muitas vezes concebido à maneira de uma indústria, cujo objectivo consiste no fornecimento de um produto. Resulta disto uma crise na sua organização, que se reflecte, por exemplo, na separação existente, de direito e de facto, entre a família e a escola. Tenha‑se também em conta a rendição contemporânea ao poder do mérito, que faz que sejam os estudos a principal via de acesso a uma carreira profissional. Deste modo, acentua‑se criticamente a selecção, cujos reflexos se evidenciam no processo de dramatização do insucesso escolar.

A institucionalização da educação formal, cuja história podemos remontar ao século V a. C., aos tempos da Sofística, revela-se (como facilmente se depreende do que ficou dito) indissociável do próprio desenvolvimento da Cidade. Ora, assistimos presentemente à degenerescência semântica e ontológica da ordem política, porque esta se faz gradualmente policial. Impera a lógica ubíqua da máquina burocrática e administrativa do Estado, da qual a escola não é senão uma peça privilegiada. Submetidos a este enquadramento institucional, tanto o docente como o discente se vêem na obrigação de cumprir papéis (respectivamente, o de funcionário observante e o de cliente interessado) com os quais, na maioria dos casos, não se identificam.

Analisando o papel do aluno, que é aquele que aqui mais nos interessa, verifica-se imediatamente que a sua posição na escola, como se disse acima, é a de um cliente, pois deixa‑se instruir e examinar por alguém que, sem qualquer partilha das responsabilidades do trabalho, organizou todo o processo de ensino e aprendizagem. Tudo isto é típico, como se sabe, do ensino tradicional, que alimenta inconscientemente a ilusão da simetria entre ensinar e aprender. Ademais, do ponto de vista psicanalítico, uma relação educativa estruturada nestes moldes favorece forçosamente a manutenção da pulsão oral, de que o saber será o objecto. Pois bem, o incremento da atitude oralizante fundamenta uma relação de consumo com o real, a qual, como é óbvio, é explorada economicamente. (Note‑se que a passagem da adolescência à idade adulta parece ser cada vez mais dificultada por interesses comerciais que procuram fazer da juventude uma clientela.)

Como ultrapassar o modo arcaico de relações entre aluno e docente? Porventura através da mutação das relações entre saber e poder, o que implica necessariamente a abolição do «culto totémico» da escola e, ainda, uma crítica da corrupção capitalista da função simbólica. Mas esta crítica não pode ser selvagem, como nos parece ser a de um certo «pensamento da diferença» que está hoje na moda, pensamento, esse, que, recalcando a «morte do Pai», cultiva o mito de uma fraternidade ilusória sob a bandeira da inominada «paixão do incesto».

Eurico de Carvalho

In  A Vaca Malhada: Revista de Filosofia, n.º 8  (Outono de 2016), pp. 20‑21.

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